Last Updated on: 15th maio 2021, 10:29 am

Não é de hoje que o desejo de reconexão com os fazeres manuais começou a ganhar espaço no dia a dia das pessoas. Se por um lado a correria e o estresse são lugares-comuns, por outro, muitos de nós procuram desviar dessa lógica, valorizando, por exemplo, as práticas artesanais como forma de relaxar a mente. Com a quarentena, muita gente se viu obrigada a fazer uma parada forçada, abrindo também espaço para novas atividades dentro de casa. Pensando nisso, decidimos explorar esse universo de possibilidades falando sobre diferentes técnicas manuais aqui no blog. Que tal se inspirar e começar algo novo também?

A primeira técnica que queremos compartilhar com vocês é a do tingimento natural. Para a artesã Maibe Maroccolo, idealizadora da Mattricaria, o tingimento natural é muito mais profundo do que um tecido colorido por meio de pigmentos retirados de flores e plantas. “Essa prática vai além no sentido de conexão com a natureza e com nós mesmos”, ela diz. Ainda que o processo de tingimento seja inspirador e prazeroso por si só, Maibe destaca sua importância em questões mais essenciais: “Essa é uma técnica antiga, um saber ancestral que resgatamos e adaptamos ao nosso cenário atual, no qual realmente precisamos de uma alternativa mais sustentável para a indústria têxtil. Além disso, desenvolver práticas manuais e artesanais nos transformam de maneira positiva”, ela completa.

Olhar de especialista

Como você começou a se interessar pelo tingimento natural?

Maibe: Eu trabalhei no mercado de moda por muitos anos, procurando meu lugar no mundo. Porém minha profissão, com o objetivo de minimizar o tempo e maximizar os lucros da produção, tinha um impacto negativo sobre mim. Frustrada, fui fazer um curso de inglês de 6 meses na Europa, mas a viagem acabou durando 6 anos. Por lá, me deparei com um curso de mestrado de desenvolvimento sustentável na indústria da moda e assim estudei sobre a cadeia produtiva: o cultivo do algodão; o uso de pesticidas e seus impactos no meio ambiente; a confecção e fabricação; questões como a mão de obra escrava e infantil; a parte de distribuição e logística; até chegar no tingimento.

Descobri que, nas grandes indústrias, as águas do tingimento sintético não recebem o devido tratamento e são descartadas como efluentes. Durante o curso, foi a primeira vez que entrei em contato com o lado B da indústria da moda, e essa etapa da cadeia produtiva do tingimento foi a que mais me impactou e me conectou com a possibilidade de desenvolver estratégias alternativas. Quando voltei para o Brasil, comecei a pesquisar sobre o assunto: não se tem artigos ou livros sobre essas práticas, então foi um processo de resgate, de criar receitas, de me conectar com mulheres da minha família e outras mulheres do interior do Brasil, em comunidades. Foi assim que eu comecei nesse caminho de trabalhar com tingimento natural e plantas tintórias.

Qual o seu conselho para quem está cogitando começar essa atividade durante o isolamento? Quais são possíveis obstáculos e como contorná-los?

Maibe: Meu conselho é ter um olhar curioso sobre as plantas de sua própria região. Às vezes você nem se dá conta de que perto da sua casa tem eucalipto, mangueira, um pé de amora… mas quando começamos a trabalhar com as plantas para desenvolver tinturas e extratos, nosso olhar muda, então meu conselho é observar as espécies que te cercam, realizar testes e assim descobrir o potencial tintório do que está a seu alcance. Pense que o tingimento natural é como se fizéssemos um chá em escala maior, então precisamos coletar matérias-primas e ir testando seu potencial tintório: deixar ferver por uns minutinhos e ver se solta tinta, por exemplo.

Os obstáculos podem surgir com certas plantas que não possuem uma fixação tão boa em tecidos, como o repolho roxo, a beterraba e o feijão preto. Quando falamos de pigmento natural, logo pensamos nessas matérias-primas, mas elas não têm o que a gente chama de solidez à luz, então são cores voláteis que já desbotam. Mas isso também não precisa ser impeditivo:  precisamos questionar o que é desbotar ou manchar. São questões que a gente observa e muitas vezes abraça sem enxergá-las como um problema ou um defeito.

O que é essencial para começar a tingir?

  • Uma boa panela: sempre sugiro que a pessoa tenha um utensílio só para fazer o tingimento, separado dos itens de cozinha. Por mais que a gente esteja trabalhando com pigmentos naturais, nem sempre podemos consumi-los e podemos ter reações alérgicas se usarmos as mesmas panelas. O tamanho precisa ser grande, no mínimo 10 litros, para que seja possível tingir uma camiseta, por exemplo.
  • Resíduos da própria cozinha ou plantas tintórias: a gente sempre fala da casca de cebola como um primeiro teste, porque é algo que consumimos todos os dias, mas você pode testar com outros itens cotidianos também.

O tingimento em si é uma técnica simples e materiais idem, mas é preciso prática para chegar a resultados satisfatórios.

Onde encontrar os materiais necessários?

Maibe: Em grande maioria, são materiais que podemos coletar na natureza mesmo. Podemos passear pelo bairro e coletar algumas folhas, cascas, sementes e flores, com responsabilidade e em pequena quantidade. É uma coleta consciente que, a princípio, é para testes. Também gosto de falar de parcerias: quando falamos em matérias-primas, podemos pensar em reutilizar resíduos de outras indústrias: aqui em Brasília eu tenho parceria com supermercados, restaurantes e mercearias, que separam para mim os resíduos deles, como cascas de cebola, talos de beterraba, talos de cenoura… então o lixo de um pode ser o insumo do outro. Não é simplesmente sobre uma lista de materiais para comprar, mas sim uma conexão com parceiros, descobrir o que existe ao seu redor e movimentar a família para guardar cascas de alimentos e assim formar uma rede de fornecedores.

Outras dúvidas:

Existe algum tipo de tecido mais indicado para receber o tingimento natural?

Maibe: Sempre fibras naturais e de preferência orgânicas. Algodão, linho, seda e lã são alguns exemplos. Não realizamos o tingimento em fibras sintéticas, pois nelas o pigmento não adere tão bem quanto nas naturais. Com isso em mente, você também pode fazer o tingimento em peças que já tenha no guarda-roupa e estão velhinhas ou precisando de uma cara nova.

Depois de tingido, o que podemos fazer para manter a cor do tecido sem desbotar? 

Maibe: A manutenção de uma peça com tingimento natural deve envolver amor, cuidado e carinho. Lavar à mão, usar um sabão neutro, secar à sombra e de preferência do avesso. Eu sempre uso sabão de coco, que é mais natural e não interfere nas cores. 

Quais matérias-primas você indicaria para quem está começando? 

Maibe: Cascas de cebola; cascas de romã; folhas ou cascas de eucalipto; folhas de boldo; a flor Cosmos; cascas de barbatimão e cascas de cajueiro (que podem ser obtidas em parceria com madeireiras que descartam serragens). 

Uma dica final para quem pretende tingir em casa:

Maibe: Sinto que muitas pessoas já querem o resultado final de forma rápida, aquele tingimento em que não aparece nenhuma manchinha e tudo fica perfeito. Mas acho que, no meio disso, se perde a primeira essência de conexão com o fazer manual. É importante aproveitar o processo para realmente se beneficiar desse tempo em que nos dedicamos ao tingimento natural. Às vezes eu estou em um dia difícil e começo, por exemplo, a fazer um extrato com folhas de eucalipto, que permite que a gente respire melhor, abre o pulmão e o coração. E tem também a questão das propriedades medicinais das plantas, que nos estimulam a aproveitar essa prática para nos conectar com nós mesmos, sem querer pular direto para o resultado final.

Olhar de iniciante

Também conversamos com a Heloísa Madragoa, que decidiu se aventurar recentemente no universo do tingimento natural e agora compartilha com a gente um pouco sobre sua experiência. Olha só o que ela achou:

O que fez você se interessar pelo tingimento natural? Teve alguma relação com a quarentena?

Heloísa: Sou artista visual e professora. Meu trabalho como artista se desenvolve de forma recorrente a partir de minha preocupação com o meio ambiente. Venho de uma pesquisa e série de trabalhos onde utilizo plásticos descartados e com eles desenvolvo pinturas, colagens e cadernos. Acredito que o momento quarentena, de reflexão, questionamentos e introspecção, veio de encontro com esse mergulho no trabalho maravilhoso da Maibe.

Conte como foi a sua experiência tendo aulas online com a Maibe:

Heloísa: Foram manhãs de sábados especiais. Em cada curso, recebi o material por correios e era uma alegria abrir cada caixinha, pois já dava para sentir toda a dedicação, o cuidado, os aromas e o que estaria por vir nas aulas.

Qual foi o maior desafio nesse aprendizado?

Heloísa: Talvez o de desconstruir as técnicas já conhecidas e me abrir ao novo. Não tem uma matemática, onde as coisas necessariamente são estáticas e resultam apenas de uma forma. As possibilidades do fazer e experimentar os materiais podem ter diversos desdobramentos e considero isso muito enriquecedor.

Algo te surpreendeu (em facilidade ou dificuldade) no tingimento natural?

Heloísa: Me surpreendi com as diversas possibilidades, com o fato de permanecer curiosa, com a casa/ateliê perfumados, trazendo memórias, lembranças e possivelmente criando novas. Com os materiais também, que muitas vezes estão no nosso dia a dia, como a casca da cebola, folhas de boldo, flores, etc. Também achei legal que as aulas são gravadas, então existe a possibilidade de rever as oficinas.

O que você diria para quem precisa daquele empurrãozinho para começar?

Heloísa: Se permita experimentar e ter esse tempo para você. Acredito que trabalhar com os materiais naturais é um encontro com nós mesmos. Aprender a fazer as próprias tintas, o tingimento, pigmentos, etc, e poder aplicar esse conhecimento no que você ama fazer, é poético. Às vezes, o começar mesmo sem saber ao certo um caminho, o processo em si pode trazer ideias.

Texto por Yasmin Toledo | Fotos cedidas por Mattricaria